Um pouco de amor, de filmes, de sonhos... e de mim.

29 de abril de 2009

De Mariaca Colasanti

"Eu sei que agente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E porque à medida que se acostuma esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
[...]
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita. A luta para ganhar o dinheiro com que se paga. E a ganhar menos do que precisa.E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes, a abrir a revista e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema, engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma a poluição. à luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. à besteira das músicas, às bactérias da água potável. à contaminação do mar. à luta. à lenta morte dos rios. E se acostuma a não ouvir passarinhos, a não colher frutas do pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas de mais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta colá. se o cinema está cheio, agente senta na primeira fila e troce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada a gente só molha os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem o sono atrasado.
A gente se acostuma, para não ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, se tanto acostumar, se perde em si mesma."

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